Eis um fenômeno revelador de uma certa personalidade e
mentalidade progressista: qualquer um que não reze pela cartilha, qualquer um
que discorde de qualquer ponto ou aspecto da ideologia culturalmente dominante,
não é um indivíduo que discorda de um argumento A ou B, mas sim um agressor, um
infame que ousa recusar-se a aceitar a superioridade da ideologia perfeita.
Se antes apenas alguns doutrinários e doutrinados das ideologias progressistas
(muitas delas de esquerda) seriam capazes de pessoalmente se indignar com o
interlocutor de forma ostensiva, com ameaças verbais e até agressões físicas,
hoje tal comportamento de indignação agressiva virou moeda comum graças ao
conforto, proteção e distância física propiciada pela internet. Para muitos
desses progressistas das esquerdas de variadas matizes (e não só para eles), a
internet é um poderoso estimulante comportamental, como a cocaína ou o crack
para criminosos.
Usando a tela e o teclado como escudos, difamam, injuriam, caluniam e passeiam
por outros artigos do código penal sem o menor escrúpulo ou drama de
consciência. O fazem porque se consideram inimputáveis legalmente e
ideologicamente. E se acham inimputáveis porque se veem alicerçados e
justificados no pensamento político e cultural dominante gerado e legitimado
pelos intelectuais e difundido e ratificado pela intelligentsia.[1]
Se a cosmovisão que lhes é transmitida pela maioria dos professores do ensino
fundamental à universidade, onde ganha uma roupagem científica, com aceitação
ativa ou passiva dos pais, familiares, amigos e colegas, é ratificada e
ampliada por certa imprensa, comentaristas, personalidades culturais,
intelectuais e até mesmo empresários, é compreensível que considerem-na
correta, como a única e perfeita resposta para todos os problemas ocorridos
dentro da sociedade.
Quando se acredita acriticamente em uma ideia ou em um corpo de ideias como
sendo um instrumento de perfeição e de resolução plena e absoluta de todas as
questões que regularmente emergem na vida em sociedade — a qual é formada pela
interação entre indivíduos com desejos, anseios, vontades e objetivos
diferentes —, a imperfectibilidade intrínseca a qualquer criação humana é
simplesmente ignorada ou estrategicamente descartada, para que a ideologia
cumpra o seu destino histórico.
Dessa forma, uma posição contrária àquele sistema de pensamento, àquela
mentalidade, àquela falaciosa estrutura de utopia realizável no futuro, não é
entendida ou assimilada como aquilo que realmente é, mas como uma afronta, uma
ofensa, uma reação estúpida e débil a uma manifestação superior de
inteligência.
O tom de toda reação esquerdista é similar: "como ousas me
questionar?".
A influência dos intelectuais em uma democracia pode ser imensa ou crucial no
curso do desenvolvimento social, a depender "das circunstâncias
adjacentes, incluindo os níveis de liberdade para a propagação de suas ideias,
em vez de se tornarem meros instrumentos de propaganda, como acontece nos
países totalitários".[2]
E quanto mais amplo o ambiente de liberdade em que o intelectual progressista
pode se expressar e exercer a sua influência, maior a possibilidade de
convencimento e persuasão de uma parte da sociedade em relação a ideias que
põem em risco exatamente esse ambiente de liberdade que permitiu a propagação
destas ideias.
O professor Mark Lilla, que dissecou o assunto em seu excelente The Reckless
Mind: Intellectuals in Politics, relata que "professores distintos, poetas
talentosos e jornalistas influentes reuniram suas habilidades a fim de
convencer, a todos os seus ouvintes e admiradores, que os tiranos modernos eram
libertadores e que seus crimes hediondos eram nobres — bastava vê-los sob a
perspectiva correta".
Aquele que se dedicasse a "escrever, honestamente, sobre a história
intelectual do século XX na Europa", advertiu Lilla, teria "que ter
estômago forte".[3]
Por qual razão os intelectuais progressistas e a intelligentsia atentam contra
a sociedade e o ambiente de liberdade que os permitiu existir e se expressar?
Uma parte da resposta talvez esteja em dois pontos claramente identificáveis: o
primeiro é se considerarem superiores aos demais indivíduos, como se fossem os
eleitos, ou, para usar a expressão de Sowell, os ungidos[4], prontos para
iluminar e conduzir a sociedade; o segundo é uma peculiar visão de sociedade
baseada na concepção de pessoas abstratas que vivem em um mundo abstrato, o que
torna possível criar intelectualmente um modelo ideal de sociedade que exige a
exclusão da realidade fática.
No primeiro ponto, a certeza da superioridade moral e ideológica faz com que
esses intelectuais olhem para a humanidade como um problema incômodo a ser
resolvido, e com desprezo para os seus críticos, convertidos em inimigos e
sendo um mal a ser extirpado. Essa perspectiva transborda para a intelligentsia
e anaboliza a fúria dos inocentes úteis (servidores públicos, estudantes
universitários, desempregados, ressentidos etc.). Muitos deles sequer sabem que
são meros instrumentos de uma causa, mas agem em seus ambientes (em cursos de
graduação e departamentos universitários, por exemplo) como uma minoria
histérica que se apresenta ao debate como legítimos representantes dos grupos
dos quais fazem parte (a maioria silenciosa, interessada em trabalhar ou
estudar, acaba por ser afetada e denegrida).
A internet, para a intelligentsia e seus inocentes úteis, funciona como um
megafone moderno. Eles ocupam as redes sociais, os espaços de comentários de
blogs e sites, criam seus próprios blogs e sites, muitos financiados pelo
governo de turno, para vocalizar sua ideologia, hoje dominante, e atacar os
inimigos. Tenho certeza de que você, leitor, em algum momento, já se deparou
com um desses, mesmo que não tenha sido uma vítima direta dos ataques.
O modus operandi é sempre o mesmo, seja na ação ou na reação. Sobrepõem temas
freneticamente, lançam informações falsas ou adulteradas, distribuem acusações
as mais estapafúrdias, muitas valendo-se de polilogismo. Fazem, enfim, o que
podem para não permitir que nenhuma discussão prospere, pois isto exibiria a
fragilidade dos argumentos ou a própria ignorância individual acerca do tema em
questão. É uma impossibilidade desenvolver um debate de ideias e uma
ingenuidade esperar que possa havê-lo. Trata-se, no mais das vezes, de perda de
tempo e de um custo emocional.
No que tange ao segundo ponto, ou seja, a visão social peculiar ancorada em
pessoas abstratas vivendo em um mundo abstrato, a realidade, para esses
intelectuais progressistas, é um obstáculo a ser superado. Porque as pessoas
reais e o mundo existente não podem ser moldados ou redesenhados de acordo com
a teoria. Por outro lado, as pessoas e o mundo abstratos, aqueles que só
existem num exercício teórico de abstração, podem ser concebidos, remodelados,
reprogramados segundo a necessidade circunstancial e as contingências.
Assim, quando o regime no poder decide aplicar à realidade o sistema construído
sob as abstrações, há um choque violento que resulta em vítimas de carne e
osso. Se o real não se adequa ao abstrato, pior para o real e para todos que
nele vivem.
Segundo Sowell:
Quando diferenças reais entre pessoas reais são mencionadas ou levadas em
consideração por outros, os intelectuais são os primeiros a declarar que são
meras "percepções" e meros "estereótipos". Evidência para
conclusões tão apressadas são raramente perguntadas ou fornecidas. Igualdade
abstrata é o ponto de partida a priori de suas suposições. Não há motivo algum
para que pessoas abstratas tenham resultados diferentes quando suas diferenças
reais em capacidade foram, abstratamente, descartadas. (…)
A excepcional facilidade que os intelectuais têm para lidar com abstrações não
elimina a diferença entre essas abstrações e o mundo real. Nem mesmo garante
que aquilo que é válido e verdadeiro para essas abstrações seja igualmente
verdadeiro na realidade, muito menos garante que as sofisticadas visões
abstratas dos intelectuais deveriam passar por cima das experiências diretas
das pessoas vivendo no mundo real.
Os intelectuais podem, de fato, desconsiderar as "percepções" dos
outros, rotulando-as como "estereótipos" ou "mitos", mas
isso não é o mesmo que provar que elas estão empiricamente erradas, mesmo
quando um número notável de intelectuais age como se elas estivessem.
Por trás da prática disseminada de considerar diferenças de grupo em
"representações" demográficas, em várias profissões e instituições, e
utilizando os níveis de renda como evidência de discriminação, existe a noção
implícita de que os grupos não podem ser diferentes ou que quaisquer diferenças
são culpa da "sociedade", a qual deve corrigir seus erros e seus
pecados.[5]
Sowell considera que o ponto fundamental "não é dizer que a intelligentsia
estava enganada ou mal informada sobre determinadas questões", mas
"que, ao pensar em termos de pessoas abstratas num mundo abstrato, os
intelectuais se furtam à responsabilidade e ao trabalho árduo de apreender os fatos
reais sobre pessoas reais vivendo num mundo real, fatos que geralmente explicam
as discrepâncias entre o que os intelectuais veem e o que eles gostariam de
ver".
Furtar-se à realidade, a meu ver, não só é mais trabalhoso e exige
responsabilidade, como torna imprescindível reconhecer a sua existência, ou
seja, as suas variáveis, nuances, limitações, imperfeições. Isso explica por
que, segundo o autor, muitos intelectuais interpretam como erros do mundo as
diferenças entre teoria e realidade que estão na origem da confusão de
entendimento do que sejam problemas sociais.
Mas essa confusão, proposital ou ideologicamente orientada, serve para
justificar a implantação de medidas políticas de cima para baixo pelo poder
centralizado a que os intelectuais servem em maior ou menor grau.
Para os inocentes úteis nas universidades, muito deles revolucionários de
Facebook submersos no mundo abstrato de pessoas abstratas criado pelos
intelectuais e pela intelligentsia (representada pelos seus professores,
diretores de departamentos), a realidade representada por indivíduos concretos
com uma visão de mundo contrária à deles é um choque. E o impacto desse contato
lhes provoca repugnância e reações destemperadas.
Trata-se de uma situação interessante e um tanto absurda se considerarmos que
uma parcela desses jovens terá contato com o mundo real através do mundo
virtual. Cada atitude reacionária pessoalmente ou pelas redes sociais é
derivada desse espanto com a realidade. O grau de agressividade parece estar
relacionado e ser proporcional ao nível de abstração desenvolvido pelo agente.
O desequilíbrio exposto nessas reações também pode ser explicado pela saída da
zona de conforto que a ideologia provê a partir das abstrações, das
orientações, ou das ordens emitidas por um corpo de ideias que abrange e agrega
uma única solução para todos os problemas. Viver dentro dessa bolha é mais
confortável do que encarar a incômoda condição de manter uma visão crítica (e
imperfeita, sem respostas prontas e acabadas), não-dogmática, intelectualmente
honesta. Acima de tudo, é desconfortável a posição de viver num ambiente
de incertezas no qual é preciso a cada momento assumir os riscos das próprias
escolhas e testar a dimensão de sua responsabilidade.
"O fardo de tomar as próprias decisões é, para muitas pessoas,
intolerável. Estar vinculado à necessidade de decidir por conta própria é ser
escravo de seus próprios ímpetos", afirmou escritor Anthony Burgess num
texto primoroso. "É mais fácil receber orientações: fume tal cigarro — 90%
menos alcatrão; leia tal livro — 75 semanas na lista de best-sellers; não veja
tal filme", completou.
Na semana passada, conversei com um professor de uma universidade federal. O
seu relato deixou-me ainda mais abismado do que eu poderia imaginar
previamente. O nível do aparelhamento ideológico do departamento a que ele está
vinculado já ultrapassou há muito a patologia, a estupidez e a mera
desonestidade. Para tornar a história ainda mais absurda, tornou-se a vítima
preferencial do chefe do departamento e dos demais professores do curso, assim
como dos alunos incitados por aqueles, por não se submeter àquela visão de
mundo, de sociedade, de indivíduos, de política, de ideologia.
Instigado pelo professor para verificar um exemplo ínfimo do que ele vivencia
profissionalmente, visitei a comunidade do Facebook onde esses personagens
militam em detrimento da universidade e da inteligência. O que li é de fazer
qualquer pessoa sensata duvidar que uma parte da humanidade fora agraciada com
as conquistas do processo civilizatório. Professores e alunos competindo
naquela esfera de estupidez elevada ou pretensiosa que o escritor austríaco
Robert Müsil considerava como a verdadeira doença da cultura e que se
infiltrava nas mais altas esferas intelectuais, tinha enorme influência dentro
da sociedade e se manifestava com a participação ativa "na agitação da
vida intelectual, especialmente na sua inconstância e ausência de
resultados".[6]
Naquele universo restrito da rede social, a cada tentativa de concatenação de
falta de ideias combinadas com insultos, emergia a prova empírica de como se
desenvolveu e se manifesta essa estrutura de pensamento progressista e o horror
que seus agentes expressam de forma agressiva contra o elemento de perturbação
daquela ordem. Isso suscitava ataques e ultrajes dos mais variados contra o
professor, que, diante da minha sugestão diplomática, respondeu-me que em
hipótese alguma sairia daquele grupo, pois sua posição era a única nota crítica
naquela terra desolada.
De alguma forma, ele acredita que suas opiniões possam influenciar um ou outro
aluno ou professor, ou, ainda mais importante, demonstrar que a minoria
histérica não é a categoria exclusiva virtuosa e superior que pretende ser.
Se os intelectuais e a intelligentsia consideram a discordância uma ofensa, o
professor usa a razão como instrumento de resistência. Admiro. Apoio.
[1] Uso intelectuais e intelligentsia nos sentidos atribuídos por Thomas Sowell
no excelente Os Intelectuais e a Sociedade (São Paulo: É Realizações, 2011), ou
seja, intelectual como "uma categoria ocupacional, composta por pessoas
cujas ocupações profissionais operam fundamentalmente em função de ideias —
falo de escritores, acadêmicos e afins" (p. 16) e intelligentsia como o
grupo formado, "em grande parte, pelo corpo de professores, jornalistas,
ativistas sociais, adidos políticos, funcionários do judiciário e outros que
fundamentam suas crenças ou ações a partir das ideias produzidas pelos
intelectuais do primeiro escalão" (p. 21).
[2] Ibid., p. 7.
[3] Mark Lilla, The Reckless Mind: Intellectuals in Politics, New York: New
York Review of Books, 2001, p. 198, citado por Thomas Sowell Os Intelectuais e
a Sociedade, p. 9.
[4] The Vision of The Anointed, Self-Congratulation as Basis for Social Policy,
New York: Basic Books, 1995
[5] Thomas Sowell, Os Intelectuais e a Sociedade, p. 182-184.
[6] Robert Musil, Precision and Soul: Essays and Addresses, Chicago: The
University of Chicago Press, 1990, p. 284.
Bruno Garschagen - 07/04/2016 - autor do best seller "Pare de Acreditar no
Governo - Por que os Brasileiros não Confiam nos Políticos e Amam o
Estado" (Editora Record). É graduado em Direito, Mestre em Ciência
Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Oxford (visiting student),
professor de Ciência Política, tradutor, blogger (-brunogarschagen.com),
podcaster do Instituto Mises Brasil e membro do conselho editorial da MISES:
Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia.
-mises.org.br/Article.aspx?id=2381
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