Rudolf Allers — ou o "Anti-Freud", como o
chamou Louis Jugnet — foi psicólogo eminente: discípulo direto de Freud,
trabalhou mais de 13 anos com Alfred Adler, e exerceu considerável influência
em figuras tais como Victor Frankl, que foi seu aluno. Católico, vienense,
desde cedo manifestou oposição às idéias de Sigmund Freud, que considerava
anticientíficas. Em 1940 publicou seu famoso trabalho "The Successful
Error— A Critical Study of Freudian Psychanalysis", de onde tiramos o
capítulo que se vai ler, e que constitui um pungente libelo contra os erros da
psicanálise.
O naturalismo e o materialismo são, necessariamente antagônicos da religião.
Uma atitude mental que introduz fatores imateriais e trans-mundanos, que
sustenta uma noção como a de uma alma espiritual e que acredita na revelação,
torna-se, para o espírito materialista, ininteligível, estranha e perigosa. Tal
mentalidade é, verdadeiramente, o oposto do materialismo e, ao passo que as
atitudes religiosas existem e permanecem eficazes na vida humana, o
materialismo sente a sua posição ameaçada. Os defensores de uma explicação
"científica" da realidade vêem na religião, ou um inimigo, ou, pelo
menos, um estádio rudimentar da evolução, que tem de acabar por triunfar para
assegurar o "progresso" definitivo da raça humana.
A psicanálise é profundamente materialista e não pode mesmo professar outra
filosofia. A sua base é o materialismo. Se os sequazes de Freud abandonassem o
seu credo materialista, ver-se-iam obrigados a deixar de ser psicanalistas. Há
alguns que estão convencidos de que podem acreditar, ao mesmo tempo, na verdade
da religião e na verdade da psicanálise, sem incorrerem em auto-contradição.
Esses homens imaginam isso, ou porque não conhecem suficientemente uma coisa e
outra, ou porque o seu espírito é de tal natureza que se acomoda às
contradições, ou ainda talvez porque não são bastante críticos para se
aperceberem de tais contradições.
Ninguém que penetre no espírito da psicanálise e, ao mesmo tempo, seja
inteiramente conhecedor da essência da fé sobrenatural, pode acreditar que
estas duas coisas sejam compatíveis. Já varias vezes foi declarado, tanto por
autores católicos como protestantes, que a psicanálise é, basicamente
anti-cristã. Não há maneira de se sair deste dilema: ou se acredita em Cristo
ou na psicanálise. Os próprios sequazes de Freud não têm dúvidas a tal respeito.
Para eles, a religião não significa mais do que uma manifestação particular do
espírito humano, da mesma categoria que as práticas da magia, do totemismo ou
da bruxaria. Sempre os psicanalistas procuraram provar que a religião é um
produto de forças instintivas e da reação contra as mesmas.
Freud fala da religião como de uma "ilusão". Os ritos religiosos são
assemelhados a práticas devidas à obsessão, ou identificados com as mesmas
práticas. A religião é uma neurose dos grupos. Não vale a pena entrar em pormenores,
porque todas as obras dos psicanalistas estão cheias de observações no mesmo
sentido. Não há dúvida alguma de que a sua convicção é que a religião é um fato
puramente psicológico, que é nociva e condicionada pelos mesmos fatores que
condicionam a neurose nos indivíduos, e que, finalmente, para bem da
humanidade, tem de ser abolida e substituída pelo reino da ciência. Era isso
que Freud esperava; a "ilusão" devanecer-se-ia perante a luz da
razão; a ciência substituiria a religião na cultura e na vida, e uma nova época
de prosperidade reinaria, quando a ciência reinasse como senhor supremo.
Esta é a mentalidade dum homem que nasceu pouco depois dos meados do século
passado, que se educou na era do materialismo, do "liberalismo" e das
entusiásticas esperanças no futuro, e que foi incapaz de se libertar da
escravatura daquelas impressões que lhe haviam ficado da sua adolescência. Hoje
verificamos que a ciência faliu, não porque não seja uma das mais admiráveis
realizações do homem ou porque se mostrasse incapaz de promover o progresso,
mas unicamente porque lhe atribuíram a capacidade de realizar aquilo que, de
fato, nunca poderá levar a cabo. Mas a fé otimista de Freud na ciência
permaneceu inquebrantável durante mais de oito décadas de sua vida. E nós poderemos
compreender a sua imutável atitude; mas o que não podemos compreender é como
pessoas de uma geração posterior, que tinham obrigação de ver as coisas como
elas são, podem ainda defender um credo como o cientificismo. Para pessoas
desta mentalidade, a religião é apenas um fato, como muitos outros, na história
da cultura humana. E essas pessoas não estão também preparadas para admitir
qualquer diferença entre as religiões. O último livro de Freud é um exemplo
frisante desta incapacidade de discernir certos pontos que são decisivos.
Assim, ele não conhece absolutamente nada das enormes diferenças entre o
monoteísmo judaico-cristão e a idéia pagã de um deus supremo. A sua concepção
sobre o monoteísmo dos judeus, devida à sua aceitação da religião de Athon, a
divindade do sol do Egito, mostra que não conhece a essência do verdadeiro
monoteísmo, e também que não procura informar-se sobre coisas que ele mesmo era
incapaz de conhecer devidamente (1).
Basta um conhecimento superficial da psicanálise para que qualquer pessoa possa
ver o enorme golfo que separa a mentalidade cristã daquela que se encontra
implicada na concepção freudiana acerca do homem. E é verdadeiramente
impressionante ler num artigo de O. Pfister que os ensinamentos de Jesus Cristo
nos Evangelhos apresentam grandes analogias com a teoria da psicanálise. Mas
mesmo este autor, que, segundo parece, é protestante, reconhece que há também
grandes dessemelhanças. E nós só temos a dizer que, de fato, as há. Outros
teólogos protestantes, como, por exemplo, o Dr. Runestam, da Universidade de
Upsala, pensam diferentemente; para esses, a psicanálise é profundamente
contrária ao espírito do Cristianismo.
Uma filosofia que nega o livre arbítrio; que ignora a espiritualidade da alma;
que, com um oco materialismo e sem qualquer tentativa de prova, identifica os
fenômenos mentais e corporais; que não conhece outro fim senão o prazer; que se
entrega a um confuso e obstinado subjetivismo e que se mostrou cega à
verdadeira natureza da pessoa humana — não pode ter qualquer ponto comum com o
pensamento cristão. É-lhe completamente oposta.
O antagonismo existente entre a mentalidade do freudismo, de um lado, e o
espírito do Cristianismo de outro, é claramente percebido por aqueles que
acreditam que a religião no mundo moderno deve ser suplantada pela psicologia,
que o analista deve ocupar o lugar do sacerdote e que o homem encontrará alívio
para os seus sofrimentos morais e respostas às suas dificuldades pessoais no
consultório do psicanalista, em vez de encontrar esse mesmo alívio na confissão
que faz a um padre católico. Tal idéia assenta sobre um errado conhecimento da
religião e da psicanálise; ambas estas idéias estão deturpadas. Não há qualquer
similaridade entre a confissão e a análise. A confissão é um sacramento. Os
espíritos modernos não atentam senão aos fatores psicológicos que nela se
encontram envolvidos, mas é preciso notar-se que mesmo esses fatores não são
comparáveis. O penitente diz, na confissão, as coisas que sabe, narra os fatos
de que se julga culpado e, eventualmente, expõe as dificuldades que o assaltam;
tudo aquilo de que ele trata é "material consciente". O confessor
nunca faz qualquer tentativa de explorar o inconsciente. A esperança e a boa
vontade, um profundo conhecimento e, finalmente, a graça de Deus irão ajudar o
penitente a dominar os seus hábitos pecaminosos, a evitar as recaídas, a fugir
às tentações e a progredir no caminho da perfeição.
Não sucede assim com o analista e o seu paciente. Neste caso, aquilo de que o
paciente tem conhecimento pouco interessa; o que importa é o inconsciente. Nem
um nem outro confiam na boa vontade, porque a vontade não passa de um
epifenômeno, e o que é real está escondido nas profundezas do inconsciente. Não
há qualquer sentimento de culpa pela infração de uma ou outra lei moral
objetiva, ou pela rejeição de um valor moral, mas apenas uma constelação de
tendências instintivas, o conflito entre o super-ego e o id, e assim por
diante. o analista nunca poderá ocupar o lugar do sacerdote. A missão deste tem
de ser desempenhada por ele e mais ninguém (2).
Não há necessidade de estarmos a pôr à prova a paciência do leitor, trazendo
para aqui as idéias que os psicanalistas têm defendido pelo que diz respeito à
religião. Todos ele têm falado muito sobre um assunto que apenas
superficialmente conhecem e, além disso, confiam largamente nas suas concepções
etnológicas que, como já vimos (3), estão muito longe de ser dignas de crédito.
As suas conclusões relativamente a práticas religiosas, aos ritos, à psicologia
da fé e a outros assuntos semelhantes, muito dificilmente poderão ser tomadas a
sério. Muitas dessas idéias são positivamente ridículas e mostram uma
ignorância crassa.
Temos, porém, de enfrentar uma questão. Por que é que os psicanalistas têm um
tão notável interesse pela religião? Há mais obras e artigos na literatura
psicanalítica que tratam de problemas mais ou menos relacionados com a religião
do que se pode imaginar. Parece que o espírito analítico está possuído de uma
curiosa obsessão, e que se sente incapaz de se libertar dela. Não há dúvida de
que a religião tem desempenhado um importante papel na história, e continua a
influenciar mais a atitude geral da humanidade do que a própria ciência. a
ciência, considerada como tal, dificilmente exercer qualquer influência; não é
a própria ciência, mas a crença popular nela, que tem contribuído muito para
formar a mentalidade de hoje. Ora, os psicanalistas não tratam de saber as
razões por que o homem chega a acreditar na ciência de forma tão exagerada. Consideram
como um postulado o homem ter de acreditar na ciência, mas procuram mostrar que
qualquer outra crença, especialmente no sobrenatural, tem de ser explicada por
razões psicológicas. A sua atitude é inegavelmente dúbia, devido à sua crença
na ciência. Esses homens estão presos ao "cientificismo". Acreditam
fervorosamente na ciência, como a panacéia por meio da qual a humanidade se há
de erguer a um nível muito mais elevado.
Esta atitude tem certas raízes na história dos últimos sessenta ou cem anos. No
próximo capítulo diremos algumas palavras sobre este fenômeno. Mas o fenômeno
não explica a curiosa fascinação que a religião, e os problemas que lhe andam
ligados, exercem aparentemente sobre o espírito psicanalítico. Deve haver algum
fator mais diretamente ligado com a psicanálise e com a situação presente da
civilização em geral. Fazer luz sobre este ponto é coisa que se torna ainda
mais desejável, porque podemos assim alimentar a esperança de penetrarmos mais
na natureza da psicologia freudiana, ou antes na antropologia freudiana, e,
conseqüentemente, definirmos mais claramente a política que tem de ser
observada por um católico no que diz respeito à psicanálise. Todo aquele que
examine conscienciosamente a psicanálise e considere os fatos fornecidos por
esta psicologia, no que diz respeito à sua própria natureza, só poderá chegar a
uma conclusão. E tal conclusão há de ser expressa em termos muito breves: a
psicanálise é uma heresia. Esta afirmação parecerá, talvez, surpreendente. Os
cristãos podem ver-se tentados a rejeitá-la, porque não vêem nenhuma relação,
ou qualquer terreno comum, entre a psicanálise e a sua fé. Uma heresia — dirão
eles — é uma forma deturpada da verdadeira fé, que resulta de se desrespeitar
ou desvirtuar qualquer dos artigos fundamentais. Mas, seguramente, a
psicanálise nada tem de comum com a fé cristã. Não altera um artigo
fundamental, como faz o Arianismo em relação à pessoa de Jesus Cristo, ou como
faz o Protestantismo, em relação à natureza da Igreja, ou como faz ainda o
Pelagianismo, no que se refere ao papel da graça na salvação do homem. O
analista, por sua vez, não levará a sério aquela afirmação. Entende ele que
nada tem de ver com o Cristianismo, que as suas atividades são científicas e
que a ciência é independente de toda a fé. Dirá que estuda religião apenas como
um fato entre tantos outros que a história da humanidade apresenta. E acabará
por afirmar que não pensa em negar ou alterar qualquer dos artigos da fé,
porque, para ele, tais fatos nada significam senão uma forma particular da
ignorância, uma superstição ou uma ilusão — e não se nega uma ilusão ou uma
alucinação, mas apenas se trata de estudar a sua origem e curar o paciente.
Não esperemos poder convencer o psicanalista, nem nunca ele se considerará um
herético. Nenhum herético, através dos séculos que conta o Cristianismo, se
considerou alguma vez como tal. O herético, ou pretende estar dentro da Igreja,
mesmo que defenda opiniões que divergem largamente dos seus ensinamentos, ou
declara que é ele o único representante da verdade e da fé inalterada, e que a
Igreja abandonou o caminho do seu Fundador, caminho esse que ele procura
descobrir de novo.
Mas esperamos poder convencer os católicos e, sem dúvida, todos aqueles que
acreditam em Cristo como Salvador e Redentor da humanidade. Muito desejaríamos
poder conseguir isso, não só porque a atitude dos cristãos, no que se refere à
psicanálise, ficaria melhor definida e fundamentar-se-ia melhor do que num vago
sentimento de relutância e de ofensa moral, mas também porque a psicanálise é
apenas um exemplo, ou ilustração, embora bastante notável, de uma atitude
mental que se desenvolveu a ponto de dominar a mentalidade geral no decorrer do
último século. Essa atitude tornou-se então muito influente, embora as suas
raízes remontem ao passado da cultura ocidental. Um melhor entendimento daquilo
que a psicanálise é, e um melhor conhecimento da natureza do espírito que ela
cria, habilitar-nos-ão a seguirmos com mais clareza os rastos desse mesmo
espírito em outras manifestações do nosso mundo moderno.
O caráter herético da psicanálise tornar-se-á claramente visível quando
tivermos posto a descoberto as suas raízes e inspecionado os seus antecedentes.
Será isso a nossa tarefa no próximo capítulo. Aqui, apenas nos referimos ao bem
conhecido fato de que as heresias, através dos séculos do Cristianismo, sempre
sentiram a necessidade de afirmar, cada vez mais, os seus direitos. É como se
os hereges sentissem a consciência culpada e, com o fim de a fazerem calar, se
sentissem forçados a apregoar as suas supostas razões difamando a Igreja,
contra a qual se levantavam. [...]
Os católicos sabem também, não obstante se sentirem alarmados com a idéia de
não serem modernos, que tudo aquilo que realmente contradiz os ensinamentos da
sua fé não pode ser verdadeiro. Sabem, como coisa certa, que uma filosofia ou
uma ciência que desrespeita concepções fundamentais do Catolicismo há-de acabar
por desaparecer, por muito grande que seja o seu sucesso na hora presente.
Sustento que a psicanálise é um enorme e perigoso erro. E o meu interesse é
evitar que o maior número de pessoas possível — e, em primeiro lugar, tantos
cristãos quanto possível — caiam nas garras de tal erro.
Há uma concepção fundamental na religião cristã que não é apenas desprezada
mas, simplesmente, negada pela psicanálise. É a concepção do pecado. Em
psicanálise não há pecado. A sua filosofia é decididamente determinista e a
noção do pecado pressupõe o livre arbítrio. Também não há lugar para a noção de
pecado neste sistema, porque o comportamento humano, de acordo com os
princípios da antropologia freudiana, não depende das forças conscientes, mas
sim de forças inconscientes. Isto é apenas uma conseqüência lógica do fato de
que a psicanálise interpreta a consciência, não como o reconhecimento da
conformidade ou não conformidade com as leis eternas da moral ou dos valores,
mas como a expressão de um equilíbrio restabelecido, ou perturbado, de forças
instintivas. A psicanálise vê necessariamente na consciência um mero fenômeno
psicológico. Tal concepção da natureza humana não poderá exercer qualquer coisa
que se assemelhe a responsabilidade.
Desnecessário será dizer que a psicanálise nada tem de ver com quaisquer noções
que se refiram ao sobrenatural. Esta negativa completa do sobrenatural não é
própria duma ciência empírica que, prudentemente, limita as suas investigações
aos campos acessíveis à razão humana. O verdadeiro cientista tem grande
respeito pelos fatos, não se pronuncia sobre as coisas, unicamente porque as
não pode alcançar pelos seus métodos, e evita emitir juízos sobre assuntos cuja
compreensão não está dentro dos poderes da fraca razão do homem. Mas o
psicanalista vem dizer-nos que toda a crença no sobrenatural, seja na graça de
Deus, como no próprio Deus, na eficácia dos sacramentos ou na imortalidade da
alma, são tudo idéias que dimanam de fatores instintivos, que esta psicologia
se orgulha de ter descoberto e privado assim da sua força impressiva. A
psicanálise não vê diferença alguma entre a religião católica, os seus usos,
ritos e sacramentos por um lado, e os mais primitivos e fantásticos costumes
dos aborígines da Austrália ou da África central pelo outro. Dificilmente se
encontrará um artigo de fé que não tenha sido submetido à análise, e que não
tenha sido objeto de uma "explicação" psicanalítica. Estas chamadas
explicações causariam abalo num espírito católico, se não fossem manifestamente
baseadas numa absoluta incapacidade para compreender a doutrina que se pretende
explicar.
Nos parágrafos anteriores apenas nos referimos às relações da psicanálise com a
fé católica sem nada termos dito a respeito da moral católica. Vamos agora
dizer alguma coisa sobre tal assunto.
A psicanálise, considerada como tal, nada tem a dizer sobre moral. Quer-se uma
ciência, e as ciências podem fazer afirmações apenas sobre o que é, nunca sobre
aquilo que devia ser. Esta é que é a verdadeira ciência. Mas não é próprio de
verdadeiros cientistas o uso que eles atualmente fazem da ciência para propagar
qualquer "reforma" da moral, ou para declararem que esta ou aquela
atitude está, ou deixa de estar, de acordo com a moral. Tais afirmações feitas
em nome da ciência são, sem dúvida, não a expressão de conclusões que os fatos
impusessem ao espírito, mas a expressão de convicções que tem uma origem
completamente diferente. A ciência apenas nos pode dizer os meios de que nos
podemos servir para atingir algum fim, mas nada conhece acerca desses fins. A
medicina não decreta que a saúde tem de ser conservada; apenas nos ensina como
devemos proceder para a conservar. A expressão, tantas vezes ouvida, de
"educação científica", ou significa que devemos aprender na ciência a
melhor forma para realizarmos os nossos fins, ou não significa coisa alguma.
Todo aquele que acreditar que a ciência é capaz de fazer qualquer afirmação
sobre a razão por que as pessoas têm de ser educadas não conhece coisa alguma
sobre a verdadeira natureza da educação. E o mesmo sucede com a moral:
"ética científica" é uma expressão sem sentido algum.
Mas mesmo o cientista é um ser humano e, como tal, não pode deixar de ter as
suas convicções, os seus ideais e os seus desejos. É apenas natural, embora não
seja justo, que ele procure, ainda que "inconscientemente",
apresentar as suas idéias e ideais pessoais como se derivassem das ciências. As
ciências que têm por objeto o homem não são as que estão especialmente
arriscadas a estenderem-se para um campo onde não têm competência. Pelo fato de
que a saúde é um bem naturalmente desejado pelo homem, a medicina facilmente
chega a acreditar que os seus ensinamentos sobre medidas higiênicas são da
mesma natureza dos preceitos morais. Pelo fato de que a psicologia conhece que
um espírito funcionando normalmente é um valor desejado, o psicólogo julga-se
autorizado a enunciar regras sobre educação. A psicologia médica está ainda
mais propensa a cometer este erro do que qualquer outra espécie de psicologia.
O médico psicólogo observou muitíssimas vezes as desastrosas conseqüências que
uma educação errada pode ter no desenvolvimento do caráter e da personalidade.
Portanto, vem simplesmente declarar que este ou aquele método de educação
"tem" de ser adotado. assim, mais necessário se torna examinar
cuidadosamente o espírito de uma psicologia que se julga com o direito de impor
à educação os seus métodos e alvos.
Educação é mais do que instrução; é, primariamente, a construção de uma
personalidade moral. A ética e a educação estão, portanto, intimamente
correlacionadas. E a educação não termina depois de se ter freqüentado uma
escola superior ou um colégio: praticamente, a educação nunca termina. Somos
educados pelos fatos, pelas influências do meio ambiente e pelas idéias, de
forma que temos de nos educar a nós mesmos.
Uma psicologia nascida dum espírito decididamente anti-cristão não pode ser
senão excessivamente perigosa. Mesmo que o psicanalista se esforce por evitar
qualquer ofensa às idéias e sentimentos religiosos ou morais do paciente, não o
poderá conseguir. O seu método, as suas interpretações, e toda a sua mentalidade
são de uma natureza manifestamente hostil ao espírito cristão. Essa mentalidade
dá-se a conhecer a todo o momento, e encontra-se implícita em cada uma das mais
triviais observações. Ainda que o analista esteja resolvido a abster-se de toda
a influência sobre a fé ou moral do paciente, a sua resolução será ineficaz, e
ele não poderá deixar de transmitir a esse paciente o contágio de um espírito
anti-cristão.
Há alguma coisa profundamente errada neste espírito, e o que está errado melhor
se aperceberá, se considerarmos as idéias que a psicanálise professa a respeito
do homem normal. A teoria de Freud era, e ainda o é em grande extensão, um
processo para a cura de doentes nervosos. Todo o tratamento tem de ter como
ponto de referência alguma idéia de normalidade, porque a obtenção dessa
normalidade é o sinal característico de que o tratamento foi bem sucedido.
Freud disse, mais do que uma vez, que um homem é normal quando está apto a
trabalhar e a gozar a vida. Não há nada mais na concepção psicanalítica sobre a
natureza normal do homem. Gozar implica, sem dúvida, a adaptação à realidade,
desde que, não sendo assim, o desprazer seria maior do que o prazer.
Esta concepção foi estabelecida de novo, por exemplo, por Hendriks, que declara
que a culminação do desenvolvido ego consiste em o indivíduo se tornar capaz de
manter a sua existência, e assegurar uma satisfação adequada dos instintos
libidinais e agressivos, num ambiente socializado de adultos. Estas definições
são, como se está a ver, muito incompletas; os fatores morais são absolutamente
ignorados ou, antes, estão incluídos na noção de ajustamento ao meio social. É
um erro largamente divulgado o acreditar-se que a moral está limitada às
relações com os nossos vizinhos: desprezam os deveres para com a própria
pessoa, como desprezam os deveres para com Deus.
Daqui se segue que a psicanálise se mostra incapaz de avaliar devidamente
certos fenômenos, como o sentimento de culpa ou a consciência. A consciência
tem origem — observa um autor — numa identificação hostil. Vê-se que este autor
não teve, no seu espírito, a mais rápida visão do fenômeno a que se refere.
Outro diz-nos que o desejo de confessar o pecado cometido — não precisa de ser
no confessionário, porque este desejo pertence à natureza humana — resulta de
um impulso de revelação, que está relacionado com o "instinto
parcial" do exibicionismo. E há ainda um terceiro autor que nos vem dizer
que a necessidade da confissão está relacionada com o erotismo oral. Não será
preciso multiplicar os exemplos. Os três já mencionados revelam uma ignorância
de tudo quanto se refere a religião e a psicologia geral.
A concepção naturalista da natureza humana vem colorir todas as afirmações
feitas sobre moral. Os verdadeiros mandamentos, as leis eternas, são coisas que
não existem, de acordo com este ponto de vista. E tal mentalidade não pode
senão ter uma influência altamente destrutiva sobre qualquer pessoa que esteja
possuída de convicções diferentes. É possível que o tratamento psicanalítico de
uma pessoa nessas condições venha a ser mal sucedido, se as convicções são
suficientemente fortes, e se a diferença entre elas e as do analista se nota
com clareza, ou poderá ainda suceder que esse tratamento tenha como resultado
um gradual desmoronamento de tais convicções, devido à pressão contínua do
espírito hostil do psicanalista.
O perigo de a moral não naturalista ser destruída pela análise, mesmo que o
psicanalista não tenha intenção de o fazer, é sempre muito grande, porque a
moralidade — ou amoralidade — do freudismo pode tornar-se uma forte tentação. O
psicoterapeuta logo é encarado pelo paciente como pessoa de autoridade; chamem
a isso transferência, se assim o quiserem, porque o nome pouco importa. Uma
concepção da vida que apela para o lado instintivo do homem exerce sempre uma
sedução natural e, quando tal sedução é fortalecida pela autoridade, poderá
tornar-se irresistível.
Não se pode dizer com verdade que os psicanalistas preconizem um relaxamento de
costumes, mas é certo que eles concebem a moral por uma forma que é exatamente
o oposto daquilo que um católico sabe que a lei moral implica. Isto refere-se
em primeiro lugar à sexualidade, mas o mesmo sucede com qualquer outro aspecto
do comportamento. E temos de chegar à conclusão de que o católico se deve abster
de qualquer íntimo contato com as idéias freudianas. Se ele tiver dessas idéias
inteiro conhecimento, será o primeiro a evitar tal contato; no caso contrário,
é necessário pô-lo de sobreaviso.
Alguns adversários da psicanálise têm procurado acentuar a
"imoralidade" da teoria e da sua atitude prática, no que diz respeito
a certos problemas morais. o analista, dizem eles, é obrigado a defender pontos
de vista incompatíveis com a moralidade cristã e, portanto, não pode deixar de
ter uma influência destrutiva sobre o comportamento moral dos indivíduos e
sobre as idéias morais do público. Este ponto precisa de uma elucidação.
A concepção que Freud e a sua escola formaram da natureza humana é, sem dúvida,
muito diferente da concepção formada pela moral cristã e, principalmente, pela
moral católica. O "princípio do prazer", mesmo depois da sua
transformação em "princípio de realidade" não é a espécie de força
motriz que a moral cristã supõe estar no fundamento do comportamento moral. A idéia
de que a natureza humana está em ordem e "normal", desde que o
indivíduo esteja apto para trabalhar e para gozar, não é idéia que possa ser
aceitada pela ética católica. Estes aspectos da psicanálise são mais
importantes, para responder à questão, do que a insistência de Freud sobre a
sexualidade. Por muito errada que seja a noção de uma libido estendendo-se a
tudo, não precisa de ser imoral.
O fato de que a psicanálise seja um sistema puramente naturalista e incapaz de
avaliar a religião e o comportamento religioso em seu verdadeiro valor, é, sem
dúvida, um sério inconveniente. Alguns analistas sustentam que não há
necessidade de pôr em perigo as crenças religiosas de um indivíduo, desde que
tais crenças não sejam o resultado de fatores patológicos ou um obstáculo para
a recuperação da saúde mental. No entanto, será difícil ver como o analista,
por muito que queira, evitará pôr em risco a atitude religiosa. Qualquer
paciente, mesmo de inteligência média, não pode deixar de compreender que o
espírito geral daquela teoria com a qual se relacionou durante o tratamento é
completamente hostil às suas crenças religiosas. E pouco importa o fato de o
paciente refletir ou deixar de refletir nisso.
O antagonismo entre a psicanálise e a moral católica, na medida em que tal
antagonismo está implicado no sistema da filosofia e da psicologia de Freud, é
uma coisa; o consciente eventual e a influência direta, aconselhando o paciente
a agir contra os princípios da moral católica, é outra. Se se soubesse que
muitos ou alguns psicanalistas aconselhavam os seus pacientes de forma que lhe
sugerissem um comportamento contrário à moral, o perigo deste sistema
tornar-se-ia, sem dúvida, muitíssimo grande.
Algumas das idéias sustentadas pelos psicanalistas são contrárias às concepções
católicas, sem que sejam, no entanto, exclusivamente características do
freudismo. Desnecessário será dizer que um analista, encontrando uma pessoa a
braços com dificuldades domésticas, sem qualquer esperança e incapaz de
continuar a vida com o marido ou com a esposa, acabará por lhe aconselhar a
separação. Tal conselho poderá não ser mau, mas implica, na mente do analista,
a idéia de que, depois da separação, essa pessoa poderá voltar a casar-se com
alguém que lhe dê melhor vida. Esse conselho podia ter sido dado por qualquer
médico não católico; as convicções que o originaram não são especificamente
freudianas, pois pertencem a um conjunto de idéias comuns a todas aquelas
pessoas que julgam possuir "um espírito liberal". O mesmo se pode
dizer da sugestão para se procurar a satisfação sexual pré-matrimonial. Seria
diferente, se se sugerisse a uma pessoa casada que, por qualquer motivo,
procurasse relações sexuais extra-matrimoniais.
É muito difícil saber qual é a atitude normal dos analistas no que se refere a
tais problemas, bem como é também muito difícil ter a certeza de que certos
relatos publicados são inteiramente dignos de crédito. O tratamento
psicanalítico pode, em alguns casos, principalmente se não foi bem sucedido,
deixar um ressentimento definido no ânimo do paciente, e esse estado mental
poderá muito bem deturpar, mesmo sem qualquer intenção consciente de calúnia ou
de prevaricação, a memória de coisas mencionadas durante as horas de análise. É
corrente, em alguns tipos da personalidade neurótica, um certo desrespeito pela
verdade objetiva; por isso, os relatos que nos são fornecidos por doentes
nervosos têm de ser olhados com muita precaução. Alguns psicanalistas podem ter
professado uma atitude demasiadamente "liberal", no que diz respeito
a certas leis morais, mas há ainda razão para perguntar se tal atitude resulta
do fato de serem sequazes de Freud, ou se resulta da sua mentalidade geral. Não
nos devemos esquecer de que muitas idéias, definidamente anti-católicas, no que
se refere a moral, têm partido de pessoas que não eram psicanalistas. As
opiniões defendidas pelos bolchevistas sobre o casamento, sobre relações
sexuais etc., pelo menos na primeira fase do seu domínio, não dependem de
qualquer influência exercida pelos psicanalistas. Não há dúvida de que os
pontos de vista de Freud contribuíram para propagar as discussões sobre
assuntos sexuais. A insistência com que ele se referiu à sexualidade, e as suas
provas, aparentemente científicas, da importância fundamental dos fatores
sexuais na natureza humana, fortaleceram a posição daqueles que dirigiam os
seus ataques contra a moral cristã. Mas não se pode dizer que o próprio Freud
pregasse diretamente uma moral anti-católica. No entanto, pregou-a
implicitamente.
Tanto quanto os relatórios podem ser acreditados, fica-se, sem dúvida, com a
impressão de que alguns psicanalistas não sentem qualquer relutância em
aconselhar atos decididamente imorais, especialmente — e até exclusivamente —
no que se refere ao comportamento sexual. Num congresso de psiquiatras franceses
realizado há anos, o Dr. Genil-Perrin referiu-se a numerosos casos em que ele e
outros intervieram, e em que era freqüente darem-se conselhos de tal natureza.
Mas é impossível lançar mão de cifras dignas de crédito. Não podemos saber
quantos psicanalistas teriam, eventualmente, procedido dessa forma, nem
tampouco podemos saber quantas vezes eles se viram obrigados a fazê-lo. A única
coisa de que podemos estar certos é que o sistema da psicanálise não contém
fator algum que iniba o analista de se servir de tal expediente. E sabemos
também que existe um grande número de relatórios que mencionam essa atitude por
parte de alguns psicanalistas, mas sendo de presumir que nem todos eles são
falsos ou exagerados. No entanto, a justiça pede que limitemos o nosso juízo a
fatos que podem ser provados, e a única coisa que se pode provar é o
antagonismo essencial que existe entre o espírito geral do freudismo e a
mentalidade católica. Isto, contudo, seria suficiente para obrigar os católicos
a evitarem, tanto quanto pudessem, o contato com a psicologia psicanalítica, e
a evitarem qualquer situação que pudesse dar ao analista, mesmo contra a
vontade da pessoa, ocasião de influir sobre as suas idéias.
A enumeração das proposições da escola de Freud que brigam incontestavelmente
com a fé cristã podia ainda continuar por algum tempo. Julgamos, porém, que
dissemos já o bastante. Nenhum católico poderá professar tais idéias — a idéia
da religião como uma neurose obrigatória, a idéia de Deus como sendo a imagem
do pai, e a idéia da comunhão remontar à refeição totemística etc. — idéias
essas que não podem ser consideradas senão como falsas, para não dizermos
sacrílegas. Mas há sempre uma objeção. Não será possível separar o método da
sua inaceitável filosofia? Não poderemos nós, embora sejamos cristãos, usar o
instrumento fornecido pela psicanálise? Não poderemos pôr de parte a concepção
naturalista, as idéias descabidas sobre religião, a negação da liberdade, o
papel exagerado atribuído aos instintos, e "batizar", digamos assim,
a psicanálise, mais ou menos como se diz que Santo Agostinho
"cristianizou" o Neo-Platonismo e S. Tomás "batizou"
Aristóteles? Estes filósofos pagãos também ensinaram coisas que a filosofia
cristã nunca pôde aceitar, mas ensinaram outras coisas que eram verdadeiras, ou
que, pelo menos, com alguma modificação, podiam ser verdadeiras. Se a filosofia
cristã tivesse procedido com a filosofia pagã como se deseja que o católico
proceda para com a psicanálise, isso representaria uma enorme perda para a humanidade,
e teria talvez obstado o desenvolvimento da verdadeira filosofia cristã. Que
razão há, portanto, para tal radicalismo perante a psicanálise, radicalismo
esse de que a Igreja nunca se sentiu possuída no passado?
A resposta é, simplesmente, que tal analogia não pode existir. Tentamos
mostrar, no capítulo oitavo, que se não pode separar a filosofia do método, e
que aquele que adota o segundo tem, necessariamente, de perfilhar a primeira.
Mas há outra razão para a intransigência que aqui consignamos. A psicanálise
não está para o católico na mesma relação em que a filosofia pagã estava, nos
primeiros séculos da cristandade, para com a filosofia católica. A psicanálise
é mais semelhante ao Maniqueísmo, ou a qualquer outra das grandes heresias, do
que à filosofia de Plotino ou de Aristóteles. E a Igreja nunca transigiu, por
pouco que fosse, com qualquer heresia.
O espírito da psicanálise pode-se chamar, e com muita razão, espírito pagão,
mas não é o paganismo dos tempos pré-cristãos; é o paganismo que surgiu quando
a Cristandade já existia há séculos. E é um espírito completamente diferente. O
paganismo dos velhos tempos morreu, pelo menos nos países de civilização
ocidental, e não há possibilidade de o fazer reviver. Tal espírito não pode
tornar a aparecer, porque as alterações que o pensamento humano sofreu, debaixo
da influência de dois mil anos de Cristianismo, não podem voltar atrás. O
neo-paganismo não é um regresso aos tempos de Platão ou de Sêneca: é,
simplesmente, uma revolta.
Para compreender a natureza desse espírito, é necessário examinar a origem da
psicanálise e as forças que contribuíram para o seu aparecimento. E teremos
também de investigar as condições que tornaram possível o surpreendente sucesso
das concepções freudianas. Desta maneira chegaremos — ao menos é essa a nossa
esperança — a um melhor conhecimento da verdadeira natureza desta teoria.
1. Freud adota, pelo que diz respeito à história da religião, o mesmo método
que segue pelo que se refere à etnologia. Limita-se a escolher, numa abundante
literatura, apenas algumas palavras que se adaptam às suas idéias
preconcebidas. Assim, presta grande crédito a um livro, no qual se aventa a
hipótese de que Moisés foi assassinado pelos judeus. Este trabalho foi
rejeitado pelas autoridades no assunto, mas isso não impede que Freud se apoie
sobre ele para os seus raciocínios. A sua teoria, de acordo com a sua maneira
de pensar, não precisa de provas, pois é já de per si uma prova de todas as
asserções nela contidas. Ora, isto não é maneira de proceder para um homem de
ciência. Seria necessário que os psicanalistas prestassem atenção ao fato de as
referências, ou testemunhos de Freud, serem tão infelizes. Sempre que escolhe
um autor, trata-se de um indivíduo que não merece a consideração das autoridades
do assunto em questão.
2. Para melhor elucidação sobre essas questões, veja-se o meu artigo
"Confessor e Alienista", Revista Eclesiástica, 1938, 99, 401.
3. Allers refere-se ao capítulo 9 do livro em questão, chamado "A
Psicanálise e a etnologia". [Nota da Editora]
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